RAZÕES DE VETO
Projeto de Lei nº 294/05
Ofício ATL nº 105, de 30 de agosto de 2011
Ref.: OF-SGP23 nº 2701/2011
Senhor Presidente
Por meio do ofício acima referenciado, ao qual ora me reporto, Vossa Excelência encaminhou à sanção cópia autêntica do Projeto de Lei nº 294/05, de autoria do Vereador Carlos Apolinário, aprovado na sessão de 2 de agosto do corrente ano, que objetiva dispor sobre a instituição do “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”.De acordo com o teor da propositura, o “Dia Municipal do Orgulho Heterossexual”, a ser anualmente comemorado no 3º domingo do mês de dezembro, integrará o “Calendário Oficial de Datas e Eventos do Município de São Paulo”, devendo o Poder Executivo envidar esforços no sentido de divulgar a data com o objetivo de “conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes” (artigos 1º e 2º).
Contudo, considerando que, à vista das conclusões alcançadas no parecer expendido pela Procuradoria Geral do Município, acolhida pela Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos, e na manifestação da Secretaria Municipal de Participação e Parceria, conforme restará adiante explicitado, o conteúdo da propositura é materialmente inconstitucional e ilegal, bem como contraria o interesse público, vejo-me na contingência de, com fundamento no artigo 42, § 1º, da Lei Orgânica do Município, vetar totalmente o texto assim aprovado.
Referido projeto de lei, cujo artigo 1º parece tão somente instituir e acrescentar mais uma data comemorativa ao Calendário de Eventos da Cidade de São Paulo, o que seria plenamente legítimo, na realidade não se reveste da simplicidade que aparenta ostentar, circunstância que, por certo, explica a sua enorme repercussão, majoritariamente negativa, no Brasil e até mesmo na imprensa internacional, como é o caso, só para exemplificar, das revistas “Forbes” e “Newsday”, que destacaram a inusitada criação do “Straight Pride Day” em seus respectivos sites, consoante noticiado no Portal da “Folha.com” em 2 de agosto de 2011.
Em princípio, poder-se-ia argumentar que, se a Cidade de São Paulo comemora, como tantas outras no Brasil e no mundo, o “Dia do Orgulho Gay” (Homossexual), então, sob o pálio de uma isonomia meramente formal, seria legítimo que ela igualmente comemorasse o “Dia do Orgulho Heterossexual”, pois dessa forma todas as preferências, orientações ou tendências sexuais estariam contempladas pelo legislador no aludido Calendário, confirmando a vocação democrática e pluralista desta terra paulistana.
Essa não é, todavia, a isonomia de tratamento que o comando contido no artigo 2º do indigitado texto pareceu querer por evidência, na medida em que ali está prescrito que, vale a pena repetir, o Poder Executivo Municipal “envidará esforços no sentido de divulgar a data instituída por esta lei, objetivando conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes”. Como se vê, o dispositivo expressamente patenteia que o “Dia do Orgulho Heterossexual”, cuja comemoração anual dar-se-á na semana do natal, estará associado ao resguardo da moral e dos bons costumes. Logo, não é necessário fazer grande esforço interpretativo para ler, nas entrelinhas do pretendido preceito, que apenas e tão só a heterossexualidade deve ser associada à moral e aos bons costumes, indicando, ao revés, que a homossexualidade seri a avessa a essa moral e a esses bons costumes. Aliás, o texto da “justificativa” que acompanhou o projeto de lei por ocasião de sua apresentação descreve, em vários trechos, condutas atribuídas aos homossexuais, todas impregnadas de sentimentos de intolerância com conotação homofóbica.
Consequentemente, sob essa perspectiva, caso o Município de São Paulo, por qualquer de seus órgãos, viesse a dar cumprimento ao mencionado artigo 2º, daí resultaria a inequívoca mensagem à população em geral no sentido de que a homossexualidade seria “um modo de ser” supostamente contrário à moral e aos bons costumes, com isso violando princípios basilares e objetivos fundamentais constitucionalmente agasalhados, dentre eles o da cidadania, o da dignidade da pessoa humana, o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o da redução das desigualdades sociais, o da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e “quaisquer outras formas de discriminação”, e o da prevalência dos direitos humanos (Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 1º, incisos II e III, artig o 3º, incisos I, III e IV, e artigo 4º, inciso II).
Mas não é só. A essa desconformidade da proposta legislativa com a Carta Magna Brasileira, por si só suficiente para impedir a sua conversão em lei, soma-se o fato de que ela também não está de acordo com o interesse público. Com efeito, sob a aparência de promover o “orgulho da heterossexualidade” - e aqui se deve observar que não faz sentido algum “ter” ou “comemorar” o orgulho de pertencer a uma maioria que não sofre qualquer tipo de discriminação - a carta de lei vinda à sanção mal disfarça o preconceito contra a homossexualidade, associada, por inferência (artigo 2º) e consoante se colhe de sua “justificativa”, à falta de moral e de bons costumes. Assim, ao invés de promover o entendimento das diferenças e, pois, a paz social, função maior da Política, o projeto de lei milita a serviço do confronto e do p reconceito, razão primeira da sua contrariedade ao interesse público.
Acerca do tema, lapidar e percuciente é a abordagem realizada pelo jurista MARCOS ZILLI, Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP e Coordenador da “Coleção Fórum de Direitos Humanos”, no artigo intitulado “A criação do Dia do Orgulho Hétero Incentiva a homofobia? - Tolerar, verbo transitivo”, publicado na seção “Tendências/Debates” do Jornal Folha de S.Paulo, edição do dia 13 de agosto de 2011, do qual, por pertinente e oportuno, ora se transcreve o seguinte trecho:
“A expressão “orgulho” (“pride”), estreitamente associada à luta pela conquista da cidadania plena da chamada comunidade LGBT, representa o contraponto do sentimento de “vergonha”, que sempre pautou o tratamento opressivo dado à orientação e à identidade sexual diversa do padrão socialmente aceito. Afinal, tais comportamentos evocavam a noção de defeito, de modo que deveriam permanecer ocultos diante do vexame familiar e social que provocavam. A dignidade humana, como se sabe, é patrimÃ?nio que não está restrito a grupos específicos. No entanto, são justamente as minorias que mais se ressentem do exercício pleno de seus direitos, já que as sociedades tendem a ditar o seu ritmo à luz de uma maioria. Fixa-se, então, um padrão comum, e a ele se agrega o qualificativo da normalidade. A situação se agrava quando a minoria não é percebida como uma projeção natural da diversidade e da pluralidade humana, mas como um desvio a ser menosprezado, esquecido ou corrigido. É nesse momento que se abrem as portas para o exercício diário da intolerância e da violência. A destinação de datas relacionadas com as minorias é apenas uma das ferramentas disponíveis no vasto terreno da luta pela efetividade dos direitos humanos. Em realidade, elas possuem valor meramente simbólico, já que o objetivo é o de chamar a atenção do grupo social em favor de quem é, diariamente, esquecido no exercício de seus direitos. Busca-se promover a conscientização de que a dignidade humana não é monopólio restrito à maioria. Vem daí a consagração dos dias “da Mulher”, “da “Consciência Negra” e “do Índio”. Nessa perspectiva, a reserva de uma data especial para a celebração do orgulho dos heterossexuais se mostra desnecessária, uma vez que não há discriminação por tal condição. Não são associados à doença ou ao pecado, tampouco são alvo de perseguições no trabalho, nas escolas ou em outros ambientes sociais. A união heterossexual, por sua vez, é totalmente amparada pelo Estado e pelo Direito. Além disso, a iniciativa legislativa propicia uma leitura perigosa, capaz de desvirtuar a própria dinâmica dos direitos humanos. Com efeito, ao acentuar o vínculo já consolidado entre “orgulho” e o “padrão socialmente aceito”, a lei cria dificuldades para que se elimine o estigma da “vergonha” que persegue o movimento oposto. Afinal, vergonha não emerge do que se mostra normal, mas, sim, do que se qualifica como anormal. Em verdade, a energia criativa do legislador deveria ser canalizada em prol de políticas públicas eficientes para o processo de consolidação da respeitabilidade integral dos direitos humanos. A questão é especialmente urgente em uma cidade onde são recorrentes os atos de violência racial, étnica, religiosa , de gênero e de orientação sexual. Experiências frutíferas poderiam ser alcançadasnos bancos escolares públicos. Leis que se mostrassem preocupadas com a formação de crianças desprovidas de quaisquer preconceitos já seriam muito bem-vindas. Afinal, na base da educação dos direitos humanos repousa o valor-fonte da tolerância. É chegada a hora de aceitarmos tudo o que não se apresente como espelho.”
Por derradeiro, impende ressaltar que as políticas públicas encampadas pelo Município de São Paulo inserem-se no atual contexto nacional e internacional de reconhecimento e garantia dos direitos das denominadas minorias ou grupos em situação de vulnerabilidade social (mulheres, negros, nordestinos, crianças, pessoas com deficiência física, comunidade LGBT, idosos, pessoas em situação de rua e outros), em perfeita harmonia, aliás, com o disposto no artigo 2º, “caput” e inciso VIII, da Lei Orgânica da nossa Cidade, segundo o qual a organização do Município observará, dentre outros princípios e diretrizes, a garantia de acesso, a todos, de modo justo e igual, sem distinção de origem, raça, sexo, “orientação sexual”, cor, idade, condição econÃ?mica, religião “ou qualquer outra discriminação”, aos bens, serviços e c ondições de vida indispensáveis a uma existência digna. Por óbvio, para o alcance desse desiderato, no caso dessas minorias, faz-se necessário lançar mão da figura da “discriminação positiva”, calcada na noção aristotélica de isonomia, qual seja, tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais.
Com esse propósito, cabe destacar, pela pertinência com o assunto aqui enfocado, as políticas públicas voltadas à específica proteção do segmento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT, como a adoção, dentre outras, das seguintes medidas: a) criação da Secretaria Municipal de Participação e Parceria, cuja Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual - CADS tem por atribuição atender as necessidades específicas de referido segmento, visando a promoção da sua cidadania e o combate a todas as formas de discriminação e de preconceito; b) instituição do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual, órgão colegiado, de caráter consultivo, composto por membros da sociedade civil e Poder Público Municipal, com competência para propor o desenvolvimento de atividades que contribuam para a efetiva in tegração cultural, econÃ?mica, social e política do segmento LGBT; c) edição do Decreto nº 51.180, de 14 de janeiro de 2010, dispondo sobre a inclusão e uso do nome social de pessoas travestis e transexuais nos registros municipais relativos a serviços públicos prestados no âmbito da Administração Direta e Indireta; e d) envio, à Câmara Municipal, do Projeto de Lei nº 359/07, estabelecendo medidas destinadas ao combate de toda e qualquer forma de discriminação por orientação sexual no Município de São Paulo.
Por conseguinte, claro está que o projeto de lei em relevo, mormente em face do seu conteúdo discriminatório, efetivamente não se coaduna com as ações governamentais que vêm sendo implementadas no âmbito da Administração Pública do Município de São Paulo, direcionadas ao bem comum e à paz social.
Nessas condições, assentadas e explicitadas as razões de inconstitucionalidade, de ilegalidade e de contrariedade ao interesse público que me impedem de sancionar a iniciativa assim aprovada, devolvo o assunto ao reexame dessa Colenda Casa de Leis.
Na oportunidade, renovo a Vossa Excelência meus protestos de apreço e consideração.
GILBERTO KASSAB, Prefeito
Ao Excelentíssimo Senhor
JOSÉ POLICE NETO
Digníssimo Presidente da Câmara Municipal de São Paulo
Fonte: Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 31/08/2011, páginas 3 e 4.
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